As primeiras três matérias do especial Fim da Linha trataram, por diferentes abordagens, das dificuldades enfrentadas pelo atual sistema de transporte público de Porto Alegre. Esta quarta reportagem tem por objetivo discutir o sistema em si. Ele ainda serve à cidade? Já está superado?
O transporte público de Porto Alegre funciona em um sistema de bacias operacionais, composto por três consórcios de empresas privadas e uma empresa pública. A característica principal deste sistema é que, apesar de cada operação ser independente, não há competição direta entre linhas e a arrecadação é compartilhada por todos os componentes.
O sistema de bacias operacionais foi criado em Porto Alegre em 1998, por um decreto do prefeito Raul Pont, o terceiro de uma série de quatro administradores petistas da Capital.
“A grande mudança foi acabar com a concorrência entre as empresas. Qual era o problema que a gente tinha? As empresas eram ‘donas’ do bairro. A empresa X só ela atendia o bairro, a empresa Y atendia outro. A secretaria de Transportes não consegue atender a demanda de uma comunidade porque a empresa que estava lá não atendia e não deixava outra entrar para atender”, diz Mauri Cruz, que foi secretário municipal de Transportes em 99 e 2000 e diretor-presidente da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC).
Por exemplo, as linhas que atuavam na Restinga, que era atendida pela empresa Tinga, não podiam entrar no Partenon, atendido pela Sudeste. “Tu não conseguia criar uma linha que ligasse a Restinga ao Partenon, porque a Sudeste não deixava a Tinga ir para o Partenon, e vice-versa”, diz Mauri. “Lá dentro da Vila, era só da empresa a linha. No corredor, elas disputavam entre elas. O que a empresa fazia? Ela comprava ônibus para botar no corredor e o ônibus velho botava na vila. Tu ia no corredor, todas as empresas tinham ônibus novos, porque ali estavam disputando passageiros. Tu ia na vila, elas tinham ônibus velhos, porque o passageiro era dela já”.
A criação do sistema de bacias operacionais e a organização das empresas em consórcios encerrou essa disputa que encarecia a tarifa, ampliou o atendimento das comunidades, mas sem ferir o equilíbrio econômico-financeiro das operadoras. A divisão da arrecadação é garantida pela Câmara de Compensação Tarifária, regulada por uma também de 1998 para proporcionar a prática da tarifa social integrada, a racionalização dos custos e a remuneração das concessionárias.
“Sobrou ônibus novo e sobrou quilometragem. Essa concorrência representava um milhão de quilômetros, que passaram a sobrar. Com isso a gente conseguiu novas linhas sem elevar o custo do sistema e, portanto, sem aumentar a tarifa. Logo no início do consórcio, houve um grande boom porque também as empresas conseguiram uma melhor remuneração. Conseguiam transportar o mesmo número de passageiros com menos custos”, diz Mauri.
Ao mesmo tempo, os corredores foram ampliados — especialmente com a construção da Terceira Perimetral — para dar maior velocidade comercial, atendendo a mesma demanda em menor tempo, o que também reduz a quilometragem e a necessidade de motoristas.
Entre 1999 e 2001, a Carris foi reconhecida como a melhor empresa de transporte coletivo do Brasil, prêmio concedido pela Associação Nacional dos Transportes Públicos (1999 e 2001). “Foi um período em que o transporte deu um salto de qualidade muito grande. E, nesse embalo, foi pensada a EPTC”, diz Mauri.
Ele assinala que a empresa pública foi pensada para gerir a tarifa do transporte, não fazer a gestão do trânsito, que ainda não era municipalizada — só seria após a aprovação do novo Código de Trânsito Brasileiro (CTB). A ideia era que a EPTC gerisse a tarifa única. “A nossa estratégia era ter melhor qualidade no transporte a partir da gestão da receita pública”.
Com o novo CTB, a EPTC assumiu também a gestão do trânsito e, em decorrência da necessidade da implementação do novo código, acabou tendo esforços concentrados nessa área, diz Mauri. “O tema do controle da receita acabou ficando nos planos”. Com a chegada de José Fogaça (PPS, depois PMDB) ao Paço Municipal, a gestão da bilhetagem passou para a ATP. “Perdeu-se um momento histórico”.
As origens do sistema e a intervenção de 1989
O transporte público de Porto Alegre tem origem ainda no período do Império, quando Dom Pedro II autoriza, por decreto, a criação da Carris, então Carris de Ferro Porto-Alegrense, em 1872. A operação dos bondes começa no ano seguinte, com a linha Menino Deus. Em 1908, começam a circular os primeiros bondes elétricos, resultado da união das duas empresas que realizavam o serviço de transporte de bondes na cidade, a Carris de Ferro e a Carris Urbanos, que dois anos antes formaram a Companhia Força e Luz Porto-Alegrense para operar o sistema de bondes elétricos e o fornecimento de energia da cidade.
Os primeiros ônibus passam a circular em Porto Alegre em 1929. Em 1954, a Carris, então de propriedade da empresa norte-americana Bond & Share, se encontra em uma crise financeira e, segundo conta a história da empresa, pede para ser encampada pela Prefeitura, na gestão de Ildo Meneghetti. Em 1964, a Carris coloca em operação os troleibus, ônibus tracionados com motor elétrico, mas a operação fracassa. Ônibus e bondes convivem na cidade até o dia 8 de março de 1970, quando os segundos são retirados de circulação e os primeiros passam a ser o principal elemento do transporte público na cidade. Em 1977, ganham a companhia das lotações, originalmente as táxi-lotações, que surgem como uma alternativa de transporte seletivo e passam a compor o sistema.
A partir dos anos 1970, a Carris passa a se dedicar à operação das linhas transversais, que vão de bairro a bairro, enquanto as linhas que operam dos bairros ao Centro vão ficando a cargo das empresas privadas, que já operavam na cidade. Para dar mais agilidade ao sistema, entre 1977 e 1982, são construídos alguns dos principais corredores de ônibus da cidade, nas avenidas Érico Veríssimo, João Pessoa, Bento Gonçalves, Osvaldo Aranha e Protásio Alves, bem como criadas faixas exclusivas na Cristóvão Colombo e na Independência.
O sistema, no entanto, já apresentava falhas nos anos de 1980, tarifa cara, e era questionado pela população, sendo um dos elementos que ajudou a levar a Frente Popular para o comando da cidade.
Prefeito de Porto Alegre entre 1989 e 1992, Olívio Dutra (PT) usa o termo sucateado para descrever a situação do transporte público quando assumiu o Paço Municipal. “A frota era antiga, as paradas de ônibus estavam caindo aos pedaços, os ônibus não iam até o fundo das vilas e tínhamos uma passagem que estava constantemente aumentando, e um aumento que era caro para os usuários”, diz o ex-prefeito.
Apesar desta situação, ele destaca que a ATP era uma entidade muito forte na idade, com ligações com “setores importantes da Câmara de Vereadores”. Olívio afirma que o primeiro foco de enfrentamento da Prefeitura sobre a situação foi de buscar uma reestruturação do sistema que passasse pelo controle do aumento da tarifa. No primeiro mês de governo, as empresas solicitaram um aumento de 40% no valor da passagem. “Entendíamos que não podia ter a elevação como queriam os transportadores, aí foi um primeiro embate”, conta.
A ideia da sua administração era cobrar mais transparência das transportadoras na elaboração da planilha tarifária e envolver mais a população no controle público do sistema. “O serviço não estava bem, com a população mal atendida, os ônibus não chegavam no horário, estavam sucateados, os trabalhadores do setor não tinha as condições de trabalho mais adequadas. Nós achamos que deveríamos impor condições mais rígidas de controle e de qualidade do serviço para renovar a concessão”, lembra o ex-prefeito.
Olívio diz que, diante da resistência apresentada pelas transportadoras, a Secretária Municipal de Transportes revisou o cálculo apresentado na planilha tarifária, chegando a números que não batiam com aqueles da ATP. “A nossa planilha, evidentemente, discordou da planilha da ATP. O serviço poderia ser melhorado sem reajustar a tarifa nas condições que eles estavam impondo. Não aceitaram e isso nos levou a dizer para eles: ‘Não dá, nós temos aqui cálculos sérios e não dá para ser assim”.
Segundo o ex-prefeito, o passo seguinte das empresas foi adotar medidas para “chantagear” a Prefeitura, com a retirada de ônibus de circulação. Diante desse quadro, o governo Olívio toma uma das medidas mais marcantes de sua gestão: a intervenção em seis das 14 empresas de ônibus da cidade.
“Nós fizemos a intervenção para ver por dentro porque as empresas insistiam em manter uma política que contrariava o que propúnhamos de qualificação, de melhorar o atendimento à população, de regularizar a circulação”, diz.
A intervenção é um marco controverso na história do transporte público de Porto Alegre. Há quem diga até hoje que ela é causadora de problemas no sistema até hoje. A reportagem entrou em contato com a Associação das Transportadoras de Porto Alegre (ATP) para ter a outra versão para os fatos, mas a entidade disse que preferia não se posicionar sobre o assunto por ele ser muito antigo, preferindo contribuir apenas para discussões atuais propostas nesta série.
Olívio afirma que o embate foi travado na imprensa, com as rádios matutinas defendendo o lado das empresas e produzindo um desgaste político ao governo. No entanto, como resultado da intervenção, diz que descobriu-se que a planilha tarifária não era composta apenas pelos custos do sistema de transporte.
“Essa intervenção nos possibilitou verificar que a tarifa estava servindo também para outros negócios dos empresários, na área de turismo, por exemplo. Fomos atrás dos ônibus que começaram a desaparecer, encontramos em sítios do interior do município e também fora do município. Fomos trazendo esses ônibus e também tratando de qualificar o serviço da Carris. Uma empresa pública, de qualidade boa, mas que também estava com os ônibus sucateados”, afirma.
A intervenção durou entre fevereiro de 1989 e março de 1990, quando as duas últimas empresas foram devolvidas aos proprietários. Além do custo político, o processo resultou em uma longa batalha jurídica, que resultaria em uma derrota à Prefeitura. Em agosto de 1999, em um acordo firmado pelo então prefeito Raul Pont, a Prefeitura, entre outras coisas, se comprometeu a pagar 48 parcelas mensais de R$ 125 mil, totalizando R$ 6 milhões em valores da época.
Olívio, no entanto, defende que a intervenção teve resultados positivos para o transporte público da Capital. “À medida que fomos verificando o funcionamento das empresas, propondo que funcionassem com regras claras, fomos devolvendo as empresas.Também possibilitou que discutíssemos com a população não só a tarifa, mas a política de transporte coletivo na cidade. Isso propiciou que tivéssemos uma tarifa razoável, nunca aquela ideal, mais baixa, mas com o dinheiro dele muito melhor aplicado. Tivemos um adicional na tarifa exclusivamente para a renovação da frota. Por conta disso, fizemos a maior renovação da frota do transporte coletivo desde então”, afirma.
O sistema ainda é o ideal?
O sistema de bacias operacionais sobreviveu à licitação do transporte público, realizada em 2015, que, com algumas readequações, manteve a divisão das linhas entre três consórcios privados — bacias Sul, Leste/Sudeste e Norte/Nordeste — e a empresa pública.
Vinte anos após ser implementado, o sistema ainda é considerado como adequado pelas operadoras. “É a coisa mais eficiente que temos em uma cidade. Tira a concorrência entre os operadores. Não existe uma empresa estar mal e a outra estar bem em termos de contrato, ele é igual para todo mundo. Ou todo mundo está mal ou todo mundo está bem, e hoje todo mundo está mal. Se divide as mazelas de forma igual para todos os operadores”, diz o diretor-executivo da Associação dos Transportadores de Passageiros de Porto Alegre, Gustavo Simionovschi.
Ex-diretor-presidente da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) entre 2010 e 2016, Vanderlei Cappellari concorda com esta avaliação. “Porto Alegre tem o atendimento entre a porta do usuário e a primeira parada com a menor distância entre todas as cidades do Brasil”, afirma.
Já o professor de Arquitetura e Urbanismo e consultor em Transporte e Mobilidade Emilio Merino acredita que o sistema precisa melhorar. Ele destaca que o modelo era bom, muito bom, tanto assim que foi exportado para outras cidades e países. “A gente fazia de cooperação internacionais. O modelo de bacias operacionais está registrado em livros europeus como modelo interessantíssimo”, diz.
Contudo, afirma que a cidade “dormiu nos louros da vitória”, o que fez com que não fossem feitas reestruturações ou adequações ao modelo. “Ficamos com um modelo que era excelente nos anos 2000, mas parou no tempo. Não se dinamizou. Nesse momento, nem os operadores, nem os usuários, nem o órgão gestor estão contentes com o transporte e isso leva a dizer que é um modelo falido, um modelo não regulamentando em função das tarifas, que é um modelo em função das planilhas tarifárias que vai subir, subir. É um modelo que foi concebido através da demanda e qualidade do serviço e que já não funciona”, diz Merino.
A próxima e última reportagem deste especial Fim da Linha irá trazer sugestões e alternativas para qualificar o sistema.
1 comentário
Pedro Xavier de Araujo · 14 de março de 2019 às 15:24
Luis Eduardo, muito importante esse especial, meus parabéns! Aspectos fundamentais que poderiam ser explorados são: o controle do sistema de bilhetagem e da câmara de compensação tarifária (até hoje na mão das empresas) e a integração entre os sistemas urbanos e metropolitanos.
A licitação previa que o o controle do sistema de bilhetagem e da câmara de compensação tarifária seriam públicos, e que os recursos oriundos da gestão financeira da câmara (gera muito dinheiro) seriam revertidos em modicidade tarifária. Após ser eleito, o prefeito Marchezan Jr. submeteu à câmara de vereadores em dezembro de 2016 um projeto de lei que prolongava a isenção de ISS para as empresas de transporte. Em contrapartida, o projeto de lei exigia que as empresas de transporte deveriam “até 31 de dezembro de 2018, promover a transferência da gestão e da administração do sistema de bilhetagem eletrônica do sistema de transporte coletivo por ônibus ao Município de Porto Alegre, por intermédio da Empresa Pública de Transportes e Circulação (EPTC)” (Lei complementar 808 de 2016, art. 2). Mas isso não ocorreu até hoje.
Todos os estudos e planos de mobilidade e transporte já elaborados na cidade e na RMPA apontam para a urgente necessidade de integração entre os sistemas que operam sobrepostos (urbano e metropolitano). A mobilidade em Porto Alegre é metropolitana, mas o sistema e a gestão são incapazes de operar assim, fechando os olhos pra realidade. Nenhum gestor até hoje teve coragem de enfrentar esta questão.